Olhou à sua volta, respirou fundo e foi buscar o sorriso outra vez. Entregou o sorriso à sala cheia que esperava com antecipação as próximas palavras.
–E com isto pretendemos não só revolucionar o mundo da comunicação, como alterar para sempre as relações humanas, curar o cancro, acabar com a fome e criar uma efectiva paz no mundo.
Sorriu para dentro, ainda calado, e entregou um sorriso mais verdadeiro à plateia. Respirou outra vez e falou:
-E com isto pretendemos facilitar a comunicação móvel em Portugal, de forma a optimizar as linhas disponíveis conseguindo ao mesmo tempo um mercado competitivo.
As palmas começaram praticamente em uníssono, seguindo sempre num meio tom entre o militar e genuinamente emocionado, mas sempre baixas. Não se pode esperar mais do que isto duma palestra com este tema. Arrumou o portátil no saco e desceu do palco, cruzando-se logo com o próximo orador, também ele a receber as mesmas palmas. Não evitou o leve sentimento de desilusão por ter recebido palmas depois de um discurso inteiro, indênticas às que rebece um tipo que ainda nem sequer falou.
Saiu e procurou uma casa de banho onde lavou as mãos e passou os dedos ainda húmidos pelo cabelo, e achou que estava composto. Encontrou, à saída da casa de banho um empregado com a trazer um tabuleiro de croquetes, de onde tirou três e repôs um para não parecer esfomeado. A ex-namorada tinha passado dois anos a advertê-lo para aquela situação. Não se pode parecer esfomeado. Duas horas mais tarde em casa ocorreu-he que repôr um croquete tinha acabado por parecer pior do que ter tirado três duma vez, e chamou-se estúpido duas vezes. Jantou uma hora depois disso, na mesa da cozinha, ao mesmo tempo que leu o blog do amigo emigrado no Brasil.
Fez tudo isto nesse dia sabendo que era o seu último. Teve pena de todas as outras pessoas do mundo cujas histórias eram contadas por outras, vangloriando-se do pouco que o pobre sujeito sabe sobre o seu último dia de vida. Na sua história, se alguém a contasse, ele nunca seria um palerma. Na sua história ele seria calmo e profissional e educado, e aceitou o seu último dia de vida como uma justiça poética que ele próprio na verdade não reconhecia, mas sabia com alguma certeza existir.
Continuou a ler o blog do amigo no Brasil, um mentiroso a viver no meio de caipirinhas e mamas de silicone, e deixou esfriar o café. Chamou-se estúpido mais uma vez. Quando se levantou para pôr a chávena no microondas reparou no gato em cima do lavatório e fez-lhe uma festa. O gato respondeu enconstando-se um bocadinho e deixou-se cair porque a mão dele já lá não estava. Olhou para o gato friamente e disse Que merda, não gostes tanto de mim!
À uma da manhã deitou-se, depois de ver episódios repetidos e trocados de duas ou três séries de que nem gosta especialmente. Apagou a luz e pela primeira vez em muitos anos colocou-se na posição de dormir preferida, que o médico tinha proibído por causa da coluna. E adormeceu.
De manhã acordou feliz e descansado. De manhã acordou feliz como não se lembra nunca de ter acordado. E de repente apercebeu-se que de manhã acordou. E que acordou feliz porque este era o dia em que já não estaria vivo. Não comprendia, não fazia sentido. Tinha a certeza que era naquele dia. Era ontem, dia 24 de Agosto de 2008. Tudo o que a cigana lhe tinha dito desde os 14 anos de idade estava certo. O divórcio dos pais, a morte da avó, o nascimento da meia-irmã, o fim do seu curso, até a terrível apresentação na palestra de ontem tinha sido descrita pela cigana. Tudo estava no lugar, o que raio estava ele ainda ali a fazer?
Sentou-se na sala, com o gato no colo a pedir festas e a mão dele, instintivamente, a fazer-lhe festas como se não o visse há um mês. Sentado assim pensou e repensou tudo o que fez e tudo o que poderia ter levado àquela situação. Era para ter morrido, mas não sabia como, por isso era difícil perceber o que fez mal. Resolveu finalmente comer o pequeno almoço, que preparou devagar e com requintes de guloso enquanto continuava a fazer festas ao gato.
Lembrou-se que tinha rapidamente de fazer um telefonema, para evitar que o plano que tinha feito tivesse continuidade. Ligou para a ex. Pediu-lhe desculpa, agradeceu o trabalho que deu, mas já não era preciso vir buscar o gato. O Matias afinal ficava com ele e não se falava mais nisso. Pelo meio não conseguiu evitar brincar e dizer-lhe: Ontem tinhas ficado orgulhosa de mim, resisti aos croquetes.
Desligou o telefone a sorrir levemente, e foi aí que ouviu as notícias, e com elas apresentou o sorriso mais verdadeiro da sua vida.
– A conferência europeia sobre telecomunicações móveis, realizada ontem na nossa capital, terminou abruptamente por volta das 19 horas após terem sido conhecidos dois casos de intoxicação alimentar grave devido ao serviço de catering contratado para o evento.