Obrigada Mãe, e obrigada Pai
Cresci a olhar para esta imagem. Estava na sala de jantar dos meus avós uma réplica, bem grande, e ficava mesmo por cima da cabeça da minha avó e de frente para mim quando lá ficava em casa. Antes de saber ler, a minha atenção neste quadro ia sempre para a menina da última janela, que era bonita e parecia feliz e tinha uma flor no cabelo. Isto deve ter acontecido porque evitava concentrar-me nas caras que metem um bocadinho de mdo e que ficavam a ver-me comer.
Quando aprendi a ler, a frase "a poesia está na rua" foi lida por mim muitas vezes à mesa, devagarinho - a pôésia estáaa na Érre e U .. RUA. Depressa se tornou numa frase que significava almoços de verão com gelatina de sobremesa, diabruras com a minha prima, Maria-João-pára-de-engonhar-e-come-a-sopa, etecétera e tal.
Um dia os meus pais, como quem explica pela primeira vez a um filho como se fazem os bebés, sentaram-me ao pé deles num feriado, tocaram discos do Zeca Afonso e contaram-me, com muito tempo , muito carinho e muitos pormenores o que foi o 25 de Abril. No fundo, os meus pais contaram-me, pela primeira vez, o que eram para além de serem meus pais. E desde esse dia, nunca mais vi o quadro dos meus avós com os mesmos olhos.
Como se automacticamente tivessemos criado uma tradição familiar naquele dia, todos os anos, desse para a frente, na minha casa se contaram histórias do 25 de Abril. Sempre histórias novas, sempre histórias mais intensas com o passar dos anos, adivinhando a minha crescente capacidade de digerir histórias mais pesadas. Os amigos presos, os amigos exilados, os sustos, os insultos na rua, a felicidade daquele dia, a minha mãe com pneumonia a sair para a rua, a minha avó com medo do fim do mundo a comprar enlatados.
E com cada ano que passava, lá voltava eu a casa dos meus avós, sentada à mesa de jantar a dar mais e mais significado àquele quadro. O casal apaixonado a beijar-se na rua, a família de cinco pessoas à espreita pela janela, o olhar determinada do quem lidera o corso na rua... Nunca mais vou ver essa imagem sem parar, um bocadinho, a cumprimentar todas as pessoas que lá estão, a ilustrar a história dos meus pais e do meu país.
Secretamente, e cheia de peso na consciência, pensava que gostava de ter vivido tudo aquilo, não ter crescido com a minha liberdade adquirida, ter tido um dia assim, para sair à rua e celebrar uma vitória com o resto do mundo. É só hoje que vejo que ter nascido depois de 74 é uma benção escondida. É nascer na liberdade de poder ser mulher, como quero, e poder fazer com as minhas ideas o que quero. E ao mesmo tempo poder agradecer por ter tido este Pai e esta Mãe, que tanto fizeram para que percebesse o privilegiada que sou.